NAVEGAR É PRECISO. VIVER NÃO É PRECISO”


Assim ficou conhecido e registrado nos anais da nossa história o discurso brilhantemente proferido pelo Deputado Ulysses Guimarães na Convenção do MDB, aos 22 de setembro de 1973 em Brasília, lançando-se como ‘anticandidato’ à presidência da República. Ensaiava-se o processo de abertura, o caminho para a redemocratização do Brasil.



NAVEGAR É PRECISO. VIVER NÃO É PRECISO


O paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial brasileira.

Na situação, o anunciado como candidato em verdade é o presidente, não aguarda

a eleição e sim a posse.


Na oposição, também não há candidato, pois não pode haver

candidato a lugar de antemão provido. A 15 de janeiro próximo, com o apelido de

“eleição”, o Congresso Nacional será palco de cerimônia de diplomação na qual

senadores, deputados federais e estaduais da agremiação


majoritária certificarão investidura outorgada com

anterioridade.


O Movimento Democrático Brasileiro não alimenta ilusões quanto

à homologação cega e inevitável, imperativo da identificação do voto ostensivo

e da fatalidade da perda do mandato parlamentar, obra farisaica de pretenso

Colégio Eleitoral em que a independência foi desalojada pela fidelidade

partidária.


A inviabilidade da candidatura oposicionista testemunhará

perante a nação e perante o mundo que o sistema não é democrático, de vez que

tanto quanto dure este, a atual situação sempre será governo, perenidade

impossível quando o poder é consentido pelo escrutínio direto, universal e

secreto, em que a alternatividade de partidos é a regra, consoante ocorre nos

países civilizados.


Não é o candidato que vai recorrer o país. É o

anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que

homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita

prisões desamparadas pelo habeas

corpus e

condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas

pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque

ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e

ao cinema.


No que concerne ao primeiro cargo da União e dos estados,

dura e triste tarefa esta de pregar numa república que

não consulta os cidadãos e numa democracia que

silenciou a voz das urnas.


Eis um tema para o teatro do absurdo de Bertolt Brecht, que,

em peça fulgurante, escarnece da insânia do arbítrio prepotente ao aconselhar

que, se o povo perde a confiança do governo, o governo deve dissolver o povo e

eleger um outro.


Não como campanha, pois isto equivaleria a tola viagem rumo

ao impossível, a peregrinação da oposição pelo país perseguirá tríplice

objetivo:


I – Exercer sem temor e sem provocação sua função

institucional de crítica e fiscalização ao governo e ao sistema, clamando pela

eliminação dos instrumentos e da legislação discricionários, com prioridade

urgente e absoluta a revogação do AI-5 e a reforma da Carta Constitucional em vigor.


II – Doutrinar com o programa partidário, unanimemente

aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, conscientizando o povo sobre seu

conteúdo político, social, econômico, educacional, nacionalista,

desenvolvimentista com liberdade e justiça social, o qual será realidade assim que o Movimento Democrático Brasileiro for governo, pelo

sufrágio livre e sem intermediários do povo.


III – Concitar os eleitores, frustrados pela interdição, a

15 de janeiro de 1974, de eleger o presidente e o vice-presidente da República,

para que a 15 de novembro do mesmo ano elejam senadores, deputados federais e

estaduais da oposição, etapa fundamental para atuação e decisões parlamentares

que conquistarão a normalidade democrática, inclusive número para propor

emendas e reforma da Carta Constitucional de 1969 e a instalação de comissões

parlamentares de inquérito, de cuja ação investigatória e moralizadora a

presente legislatura se encontra jejuna e a atual administração imune, pela

facciosa intolerância da maioria,situacionista.


Hoje e aqui serei breve.


Somos todos cruzados da mesma cruzada. Dispensável, assim,

pretender convencer o convicto, converter o cristão, predicar a virtude da

liberdade a liberais, que pela fé republicana pagam o preço de riscos e

sofrimentos.


Serei mais explícito e minudencioso ao longo da jornada,

quando falarei também a nossos irmãos postados no outro lado do rio da

democracia.


Aos que aí se situaram por opção ou conveniência, apostasia

política mas rebelde à redenção.


Prioritariamente, aos que foram marginalizados pelo

ceticismo e pela indiferença, notadamente os jovens e os trabalhadores,

intoxicados por maciça e diuturna propaganda e compelidos a tão prolongada e

implacável dieta de informações.


Quando a oposição clama pela reformulação das estruturas

político-sociais e pela incolumidade dos direitos dos cidadãos, sua reiteração

aflige os corifeus dos poderosos do dia.


Faltos de razão e argumentos, acoimam-na de fastidiosa

repetição. Condenável é repetir o erro e não sua crítica. Saibam que a

persistência dos abusos terá como resposta a pertinácia das denúncias.


Ressaltarei nesta convenção a liberdade de expressão, que é

apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas

ou banidas.


Ressaltarei nesta convenção a liberdade de expressão, que é

apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas

ou banidas.


É inócua a prerrogativa que faculta falar em Brasília, não

podendo ser escutado no Brasil, porquanto a censura à imprensa, ao rádio e à

televisão venda os olhos e tapa os ouvidos do povo. O drama dos censores é que

se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu

engano fatal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os

fatos, eliminar os acontecimentos, decretar o desaparecimento das ocorrência

indesejáveis.


A verdade poderá ser temporariamente ocultada, nunca

destruída. O futuro e a História são incensuráveis.


A informação, que abrange a crítica, é inarredável requisito

de acerto para os governos verdadeiramente fortes e bem-intencionados, que

buscam o bem público e não a popularidade. Quem, senão ela, poderá dizer ao

chefe de Estado o que realmente se passa, às vezes de suma gravidade, na

intimidade dos ministérios e dos múltiplos e superpovoados órgãos

descentralizados?


Quem, senão ela, investigará e contestará os conselhos

ineptos dos ministros, as falsas prioridades dos técnicos, o planejamento

defasado dos assessores? Essa a sabedoria e o dimensionamento da prática com

que o gênio político britânico enriqueceu o direito público: oposição do

governo de Sua Majestade, ao governo de Sua Majestade.


A burocracia pode ser preguiçosa, descortês, incapaz e até

corrupta. Não é exclusivamente na Dinamarca, em qualquer reino sempre há algo

de podre. Rematada insânia tornar impublicáveis lacunas, faltas ou crimes, pois

contamina a responsabilidade do governante que a ordena ou tolera.


Eis por que o poder absoluto, erigido em infalível pela

censura, corrompe e fracassa absolutamente.


É axiomático, para finalizar, que sem liberdade de

comunicação não há, em sua inteireza, oposição, muito menos partido de

oposição.


Como o desenvolvimento é o desafio da atual geração, pois ou

o Brasil se desenvolve ou desaparecerá, o Movimento Democrático Brasileiro, em

seu programa, define sua filosofia e seu compromisso com a inadiável ruptura da

maldita estrutura da miséria, da doença, do analfabetismo, do atraso tecnológico e político.


A liberdade e a justiça social não são meras consequências

do desenvolvimento. Integram a condição insubstituível de sua procura, o

pré-requisito de sua formulação, a humanidade de sua destinação.


A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela,

generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha para os

despossuídos, os subassalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo

ganhapão ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam

para sobreviver, em lugar da escassa minoria dos que têm para esbanjar.


A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela,

generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha para os

despossuídos, os subassalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo

ganhapão ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam

para sobreviver, em lugar da escassa minoria dos que têm para esbanjar.


Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse

nome. É crescimento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é

estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranha ao homem e a seus

problemas.


Enfatize-se que desenvolvimento não é silo monumental e

desumano, montado para guardar e exibir a mitologia ou o folclore do Produto

Interno Bruto, inacessível tesouro no fundo do mar, inatingível pelas

reivindicações populares.


É intolerável mistificar uma nação a pretexto de

desenvolvê-la, rebaixá-la em armazém de riquezas, tendo como clientela

privilegiada, senão exclusiva, o governo para custeio de tantas obras

faraônicas e o poder econômico, particular ou empresarial, destacadamente o

estrangeiro, desnacionalizando a indústria e dragando para o exterior lucros indevidos.


É equívoco, fadado à catástrofe, o Estado absorver o homem e

a nação. A grandeza do homem é mais importante do que a grandeza do Estado,

porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado.


O Estado é o agente político da nação. Além disso e mais do

que isso, a nação é a língua, a tradição, a família, a religião, os costumes, a

memória dos que morreram, a luta dos que vivem, a esperança dos que nascerão.


Liberdade sem ordem e segurança é o caos. Em contraposição,

ordem e segurança sem liberdade é a permissividade das penitenciárias. As

penitenciárias modernas são minicidades, com trabalho remunerado, restaurante,

biblioteca, escola, futebol, cinema, jornais, rádio e televisão.


Os infelizes que as povoam têm quase tudo, mas não têm nada,

porque não têm a liberdade. Delas fogem, expondo a vida ou aguardam aflitos a

hora da libertação.


Do alto desta convenção, falo ao general Ernesto Geisel,

futuro chefe da nação.


As Forças Armadas têm como patrono Caxias e como exemplo

Eurico Gaspar Dutra, cidadãos que glorificaram suas espadas na defesa da lei e

na proteção à liberdade. O general Ernesto Geisel a elas pertence,

dignificou-as com sua honradez, delas sai para o supremo comando político e militar do Brasil.


A História assinalou-lhe talvez a última oportunidade para

ser instituído no Brasil, pela evolução, o governo da ordem com liberdade, do

desenvolvimento com justiça social, do povo como origem e finalidade do poder e

não seu objeto passivo e vítima inerme.


Difícil empresa, sem dúvida. Carregada de riscos, talvez.

Mas o perigo participa do destino dos verdadeiros soldados.


A estátua dos estadistas não é forjada pelo varejo da rotina

ou pela fisiologia do cotidiano.


Não é somente para entrar no céu que a porta é estreita,

conforme previne o evangelista São Mateus, no capítulo XXIII, versículo 24.


Por igual, é angustiosa a porta do dever e do bem, quando

deles depende a redenção de um povo. Esperemos que o presidente Ernesto Geisel

a transponha.


A oposição dará à próxima administração a mais alta, leal e

eficiente das colaborações: a crítica e a fiscalização.


Sabe, com humildade, que não é dona da verdade. A verdade

não tem proprietário exclusivo e infalível.


Porém sabe, também, que está mais vizinha dela e em melhores

condições para revelá-la aos transitórios detentores do poder, dela tantas

vezes desviados ou iludidos pelos tecnocratas presunçosos, que amaldiçoam e

exorcisam os opositores, pelos serviçais de todos os governos,


pelos que vitaliciamente apoiam e votam para agradar ao

príncipe.


A oposição oferece ao governo o único caminho que conduz à

verdade: a controvérsia, o diálogo, o debate, a independência para dizer sim ao bem e a coragem para dizer não ao mal, a democracia em uma

palavra.


Srs. Convencionais, do fundo do coração, digo-lhes que não

agradeço a indicação que consagra minha vida pública. Missão não se pede.

Aceita-se, para cumprir, com sacrifício e não proveito.


Como presidente nacional do Movimento Democrático

Brasileiro, agradeço-lhes, aí sim, o destemor e a determinação com que, ao sol,

aos ventos e desafiando ameaças, desfilam pela pátria o lábaro da liberdade.


Minha memória guardará as palavras amigas aqui proferidas,

permitindo-me reportar às da lavra dos grandes líderes senador Nélson Carneiro

e deputado Aldo Fagundes, parlamentares que têm os nomes perpetuados nos anais

e na admiração do Congresso Nacional.


Significo o reconhecimento do partido a Barbosa Lima

Sobrinho, por ter acudido a seu empenhado apelo.


Temporariamente deixou sua biblioteca e apartou-se da imprensa,

trincheiras do seu talento e de seu patriotismo, para exercer perante o povo o

magistério das franquias públicas, das garantias individuais e do nacionalismo.


Sua vida e sua obra podem ser erigidas em doutrina de nossa

pregação. Por fim, a imperiosidade do resgate da enorme injustiça que vitimou,

sem defesa, tantos brasileiros paladinos do bem público e da causa democrática.

Essa justiça é pacto de honra de nosso partido e seu nome é anistia.


Srs. Convencionais, a caravela vai partir. As velas estão

pandas de sonho, aladas de esperanças. O ideal está ao leme e o desconhecido se

desata à frente.


No cais alvoroçado, nossos opositores, como o Velho do

Restelo de todas as epopeias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista,

sussurram as excelências do imobilismo e a invencibilidade do establishment. Conjuram que é hora de ficar e

não de aventurar.


Mas, no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e

sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado:


“Navegar

é preciso.


Viver

não é preciso”.


Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve

possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem

sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade. 

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